Estavam os gentis e bons camponeses a trabalhar em suas casas. A senhora batia a roupa com obstinação e lisura. Ia o poeta com torno e formão chanfrado. Passou o vendedor de maçã na carroça. Colocou um destino sobre a mesa, a cartomante. Contudo, dobrou o sino.
Não eram já horas ou morte. Não era o que habitualmente é. A roupa sobrou no batente, a madeira esperou a metamorfose. Freou a carroça e as maçãs. O destino foi deixado. Estavam em poucos minutos, no adro da igreja Santa Cruz das Uvas, todos os aldeões, espíritos da floresta e, poderíamos mesmo supor, algum estrangeiro.
Santificada eminência anunciou. “Uma tragédia sobre nós”. “Qual tragédia, senhor?”, perguntaram os camponeses. “Todos os livros da cidade foram queimados”.
Abateu-se o pânico geral. Estremeceu a terra, invadiu a água, carbonizaram-se as árvores, caíram os telhados. O bom Deus fechou os braços. A gritaria logrou comoção das outras vilas. Mas já não havia biblioteca naquele reino.
A então Vossa Majestade tossiu, tossiu, pigarreou uma tonelada. Não suspeitaram a corte nem a rainha, muito menos os criados; morria acabrunhado. “Foi um grão de milho alojado na garganta”. Constatou o médico-real.
Os oportunos viram, naquele acontecimento, o momento para concretizar a aspiração de tantos séculos. Sem livros, trataram de confundir todo o reino. Quem pode dizer que dia é hoje, afinal? Segundo quem, em qual época ou local, pode confiar ser esta a família real?
Bandeiras hasteadas, cento e trinta janelas quebradas do castelo. Cabeças da revolução em riste. Algumas crianças acertadas em letargia. Um cachecol vermelho flutuando na praça da capital. “Sumiu a rainha-mãe”, anunciou o revolucionário.
Vagarosamente o destino voltou a ser colocado sobre a mesa. Ia o carroceiro, agora, com os livros da Revolução. O poeta estava devidamente enterrado e no adro da Igreja Santa Cruz das Uvas, anunciava o novo comendador, que todas as casas deveriam pintar-se de laranja.
Em alguns dias também alojou-se, quem sabe dizer até quando, o progresso. Abriu-se uma empresa funerária e até foi criado um coral para o novo hino. Passou rapidamente sobre a terra seca, uma fina e perene camada de piche. Em paralelo vinha, na mesma velocidade da novidade, o trem fumaceiro, manchando o rosto da criança de preto. Era hora em que o sino toca, mas já aqui não havia sino.
Mostrou-se o daguerreótipo. Poderiam, finalmente, obter uma prova irrefutável da existência divina?
Anunciou-se o primeiro presidente, a primeira moeda, a primeira residência oficial, a primeira bandeira, o primeiro livro. Todas as coisas começaram a ser chamadas pelo o que elas realmente eram. Ficou ordenado que a partir do primeiro presidente, primeira moeda, primeira residência oficial, etc; viria o segundo presidente, a segunda moeda, construir-se-ia uma segunda residência oficial e se necessário costurariam a segunda bandeira. E assim até o infinito. Escrever-se-ia um segundo, terceiro ou quarto livro de acordo com a necessidade do segundo, terceiro, quarto ou todos os outros governos.
Começou-se, então, o novo início.
Entretanto, como nos anos antes da revolução, tiveram que reunir-se, novamente, todos os cidadãos daquela cidade, no períbolo da Igreja Santa Cruz das Uvas.
O espantalho honorário proclamava independência. “Não mais pássaros espantarei, não mais nesta vila, neste país, ficarei”.
À enredada notícia instaurou-se a meditação matemática. Consultaram o primeiro livro e não havia previsão para este novo fato.
Começou-se a suspeitar que, afinal, também antes, nunca tivessem ouvido falar sobre tal coisa. Um espantalho proclamando independência!
Finalmente, perguntou a velha senhora que raramente - nem mesmo em outras épocas e tempos importantes - deixava o arrozal nas mediações da cidade ou falava com as pessoas. “Como um espantalho não mais espantará pássaros se já os pássaros foram destinados a temê-lo ou como este mesmo espantalho poderá deixar esta cidade, ainda mais este país, sem ter pés ou poder pular com seu galho ou voar com seus braços de palha?”
E desta forma todos voltaram aos seus afazeres. Mais tarde descobriu-se que a velha senhora, chamada pelas crianças de Bruxa do arrozal, foi um dia a rainha-mãe daquele país.
Passou o tempo. Veio o segundo presidente, a segunda moeda... O honorável espantalho permanece incólume, porém prostrado. Acaba de aceitar o dilaceramento da sua existência.
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