quinta-feira, 28 de julho de 2011

o homem na superfície

Ele foi informado, ato contínuo ao acordar, que o departamento da universidade havia cancelado a reunião semestral da Assembleia. Assim sendo, poderia levantar-se da cama tranquilamente, preparar o café, tomar o banho, escolher a roupa, dar de comer ao cão, sair de carro e apoderar-se de imediato, sentimentalmente e como de costume, de algo novo, imprevisível, que não as mórbidas e eternais reuniões obrigatórias. Mas nesta manhã ele abriu mão desta prerrogativa.

Uma desculpa pouco sofisticada, adequada ou original, era dizer a si mesmo que, afinal, não havia algo novo. A ideia de que pudesse ficar em casa, sob os lençóis, à direita de uma edição incompreensível da Divina Comédia, já com o sol sobre todas as coisas e as goteiras de algum lavatório do apartamento, ou o olhar perscrutador do poodle que reprovava a inércia e indiferença em relação à vida e ao mundo, também não ocasionava em sua consciência um privilégio ou satisfação. Não havia, além disto, algo há muito adiado, alguma tarefa, outros compromissos para aquele dia.

A campainha tocou e isto sim era uma surpresa. À porta estava sua filha, com as malas e o travesseiro. Um dia antes daquele instituído pelos juízes.

No noticiário: museu de Nova Iorque e a descoberta arqueológica do século; gatos trapezistas da Indonésia; a crise no Oriente Médio; as torcidas de futebol do Peru; os confrontos dos jovens com a polícia; as enchentes e terremotos que assolavam de uma só vez um pobre e miserável país. Em outro, muito distante, a notícia inédita: As autoridades competentes suspeitavam que um suicídio em massa ocorrera durante a comemoração da classificação da seleção de futebol daquele mesmo país para a Copa do Mundo. Embora a idéia vigente fosse, ainda, na carência de laudos técnicos e científicos, de uma intoxicação acidental por gás.

Havia um acanhado e, sua própria filha de onze anos sentia, inofensivo cintilo de tremor na voz do jornalista locutor, que pareceu reconhecer imediatamente ao momento em que o comentário saiu de sua boca, a inadequação e o peso da frase usada para arrematar a notícia do suicídio em massa e passar daquela à seguinte. “O horror, o horror”.

Como para demonstrar interesse, e de fato era, penteou a menina enquanto ela narrava, a sua maneira e anseio, empolgadamente, a história do livro de vampiros que lia pela terceira vez; sem conceber que seria impossível ler todos os livros sobre vampiros que existiam mesmo se dedicasse a vida inteira e tivesse a eternidade para isto, pois a medida que fosse lendo, três ou mais escritores espalhados pelo globo produziriam novas histórias sobre novos vampiros em diferentes línguas e sendo impossível ler ou ter acesso a todos estes livros no mesmo instante, seria igualmente dificílimo saber tudo que há para saber sobre o que se descobriam ou contavam sobre os vampiros. Ele aquiescia-se; seu olhar repousava sobre o tráfego coagulado – o quadro admirável e verídico da vida – no monstro japonês que devorava um para raios no alto da montanha de minério de ferro; enquanto os caças da força aérea, em rasante, tocavam o beija-flor – que batia suas asas numa velocidade ainda tão impressionante – que contemplava o caminhão da mudança dos recém casados; indiferentes ao senhor que deslizava em uma casca de banana, deixada ali alguns segundos atrás por uma jovem de cabelos vermelhos e cachecol azul, que mirou, estupefata, o novo outdoor de relógios de quartzo instantaneamente dilacerado por fogos de artifícios. E no fundo, repetia-se, consecutivamente, o som das sirenes de ambulâncias e viaturas, sinos barrocos, o pio agourento das gaivotas e podia-se mesmo dizer que o canto das sereias daquela cidade; desmentindo os mais otimistas prognósticos existentes de que silêncio houvesse.

Então, o vampiro do livro chupou a heroína e ela morreu. Assim terminada a história, que, no entanto, continuou como o assunto principal da conversação, pois eventualmente a menina esquecera-se de detalhes importantes que, só agora – passada a efusão que a levou resumir as duzentas e poucas páginas em alguns minutos de narração oral – pôde incluir em retrospectiva aos acontecimentos narrados, para explicar aqueles momentos que parecem estranhamente sem sentido ou dispersos. E não se pode esquecer que ela foi capaz de ter se confundido, pois não parece claro o suficiente, embora tenha lido três vezes o livro, que alguns fatos tenham ocorrido antes ou depois e, sem saber a ordem com perspicaz exatidão, mentirá até começarem a esclarecer-se todos os pormenores em sua mente, agora não mais arrebatada pelo desejo de se chegar ao final e, portanto, a menina dará linearidade a história a qual, sem ser questionada ou interrompida pelo seu pai, angustiar-se-á, não sendo mais necessário continuar a empreender toda estas explicações e reconstruções da narrativa. Então se fez silêncio.

Se o constrangimento ou a constatação dolorosa de ter sido ignorada predominava, ela não sabia dizer. Ele, não mais apático, tentou analisar o tema. Logo pensou no amor das personagens, na moral da história e no panorama do mundo. Restaurada a inquietação e dispersados os anseios anteriores, permaneceram mais alguns minutos a conversar sobre vampiros. Por fim já era evidente que os dois sabiam tudo o que havia para saber sobre isto.

Com esta exaustão, parecia ser tangível um desejo – por tantos anos aspirado – que ambos compartilhavam. Passar um dia na praia e desta forma também visitar o velho cais e quem sabe o farol, o qual se envolveu por tantos anos em histórias e mistérios sedutores.

Como se não fossem um homem e uma menina, juntaram as pazinhas, baldes e peneiras, as raquetes de frescobol, as cadeiras, os sanduíches e partiram em excursão ao mar. Estavam ali sob o sol, a luz estabelecia, trazia à tona todas as coisas. A menina, ao longe, corria e desvanecia. Seu corpo liquefazia com a claridade e o reflexo das águas transformava-o em um fio avermelhado e branco prestes a desaparecer. Sem sombras. Tudo impecavelmente resolvido e concatenado pelo clarão do sol. E desta forma, pareceu para ele que o segredo e o problema da vida nada fossem senão as cascas do pão de fôrma tocados da mesa pelo vento, que nada seria uma esfinge senão a areia da praia e as cascas juntas, plenamente radiantes, como estrelas, sobre a superfície do mundo.

Um comentário:

  1. Ah... os detalhes que a vida leva e/ou deixa pra chamar a atenção da gente...

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